APRESENTAÇÃO

Qual é a situação atual dos estudos filosóficos no Brasil e na América Latina? Por que nos departamentos de filosofia não são ensinados os filósofos brasileiros e latino-americanos? Não sendo eles considerados genuinos filósofos, qual é a noção de filosofia que se utiliza para operar tal exclusão? Quais são os pensadores que Brasil já teve? Fomentam os departamentos de filosofia o desenvolvimento de filósofos? A 39a Semana de Filosofia da UnB se propõe refletir sobre estas questões, convidando 6 estudiosos do pensamento nacional e latino-americano, 3 deles coordenadores dos mais importantes grupos de estudo de Filosofia no Brasil.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

PALESTRA DE RODRIGO DANTAS, “TRADIÇÃO, RUPTURA E CRIAÇÃO: SOB QUE CONDIÇÕES É IMPRESCINDÍVEL FILOSOFAR?” (DIA 9 DE JUNHO, 9 HS)



(RESUMO E COMENTÁRIOS DE JULIO CABRERA).

Rodrigo Dantas começou a sua fala colocando a questão: existe uma filosofia brasileira que tenha hoje desenvolvido uma tradição de pensamento com uma influência nacional, continental ou internacional no acontecimento histórico-mundial? A primeira resposta a esta pergunta parece óbvia: não!  É claro que há no Brasil pessoas que escrevem sobre filosofia, que vão a congressos de filosofia, que praticam atividades filosóficas; mas não há um reconhecimento geral prático concreto, nacional ou internacional, de algo como uma “filosofia brasileira”. 

Mas, num segundo momento, ele se questiona sobre qual o sentido que ainda poderia ter hoje perguntar-se por uma filosofia nacional num mundo cada vez mais cosmopolita, mais globalizado, onde o que mais interessa é achar vínculos de igualdade entre todos os seres humanos do planeta na base de necessidades comuns. Menciona o antecedente de Jesus que disse há 2000 anos atrás: “Não há mais gregos, nem judeus, nem senhores, nem escravos, nem homens nem mulheres; não há distinção entre as pessoas perante Deus”. Hoje, suprimido Deus, ainda podemos reivindicar o mesmo para nosso tempo: não há diferenças entre as pessoas, e em particular não há diferenças nacionais que sejam relevantes. A idéia de nação, de nacionalidades com suas diferenças e oposições fortes a respeito de outras nações é a herança milenar da sociedade de classes; hoje vivemos num mundo onde queremos acentuar as semelhanças, tudo o que é comum. Trata-se no momento atual de ver o que nos une e não o que nos separa, abolir todas as fronteiras. 

O Brasil, em particular, sempre se caracterizou por acolher a todos, vindos de todas partes do mundo, nesse viés antropofágico dos dois Andrade. Brasil, em sua própria constituição, seria como uma espécie de autoconsciência desse espaço híbrido, desse internacionalismo visceral, como pátria espontaneamente cosmopolita, contra toda afirmação forte de peculiaridades nacionais. É claro que, como país parido na colonização e a exploração, Brasil, como os outros países latino-americanos, auto-afirmaram historicamente suas nacionalidades como uma forma de reivindicação; o nacional como resistência à opressão. O internacionalismo abriga o perigo da colonização, da despersonalização, do imperialismo, primeiro português, depois francês, depois norte-americano e atualmente mundial. Nesse contexto imperialista, acentuar o nacional pode ser uma afirmação de identidade, de resistência, de luta contra a opressão colonial. 

Foi desta forma que surgiu a questão do pensamento nacional em muitos clássicos do pensamento latino-americano, como José Marti, Simon Bolívar, Juan Carlos Mariátegui, Sánchez Vasquez, Enrique Dussel e tantos outros; e assim surge igualmente na tradição do pensamento brasileiro (Darcy Ribeiro, Mário e Oswald de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandez, Paulo Freire, etc). Este pensamento latino-americano, inclusive, precedeu estritamente a questão do “nacional” de cada pais. Há reconhecimento mundial sobre a existência deste pensamento brasileiro e latino-americano. Então, este momento de afirmação nacional contra o imperialismo deve ser resgatado, mas sempre atendendo a que isso também pode transformar-se em nacionalismo, em xenofobia, em sionismo, etc. 

Mas também a luta se globalizou. Atualmente vivemos uma realidade histórico-mundial, um acontecimento histórico-mundial no qual se insere necessariamente uma boa parte dos projetos de luta, de resistência contra a opressão, dado que a própria dominação está hoje globalizada. De tal forma, a pergunta hoje é como se inserem os pensamentos nacionais (argentinos, brasileiros, europeus) dentro de uma sociedade globalizada de exploração, de imperialismo, de divisão do trabalho, de produção e exploração. Os movimentos emancipatórios deixaram de poder ser pensados hoje dentro dos limites de nações; não há mais lugar atualmente para “projetos nacionais”, e talvez eles nunca existiram. A filosofia é hoje histórico-mundial ou não é nada. Devem ser pensadas as categorias que permitem entender essa determinação do nacional (brasileiro, argentino, europeu) pelo histórico-mundial. E este o marco onde deveríamos buscar o sentido que tem hoje perguntar por uma “filosofia brasileira”.

No Brasil, o maior dos países periféricos, quase tudo está hoje em mãos estrangeiras, tornando ilusória a idéia de um projeto nacional brasileiro. O Brasil se transformou na plataforma latino-americana do imperialismo internacional. Sessenta por cento das empresas brasileiras estão em mãos dos capitais estrangeiros, com o apoio dos interesses da burguesia nacional. Isto tem evidente impacto no plano da produção de idéias. De tal forma, as condições que permitiriam a formação de um pensamento nacional não existem mais. Nenhum pensamento ou processo social pode hoje existir sem um reconhecimento e desenvolvimento na escala global. Uma filosofia brasileira deveria indagar-se sobre essa realidade histórico-mundial. E precisa se envolver numa luta também ela globalizada. 

É nesse contexto que tem sentido perguntar-se em que condições sociais, políticas, econômicas, históricas, existenciais se desenvolveu, de fato, uma filosofia européia, e por que esse modelo está atualmente em crise. Ou seja: a própria Europa, com seus países hegemônicos, está hoje se questionando sobre essa realidade. Os jovens espanhóis, por exemplo, estão em protesto pelas atuais condições de vida das futuras gerações, que serão piores que as de seus pais. As ocupações de praças na Europa apontam para uma busca desordenada de novas formas de organização política, o anseio de que algo tem que se modificar, mesmo que os próprios participantes dessas manifestações não saibam bem como começar ações realmente eficazes. Mas eles sentem que o sistema mundial está em crise e é insustentável (“Não somos nós que estamos contra o sistema, é o sistema que está contra nós”). Os jovens espanhóis e franceses já se consideram “europeus” muito mais do que espanhóis ou franceses; as identidades nacionais (“francês”, “árabe”) se tornaram obsoletas.  

A resposta à pergunta pelas condições de uma filosofia européia é: essa filosofia se desenvolveu em momentos revolucionários (as revoluções burguesas, a revolução francesa, a revolução industrial, e depois as revoluções socialistas, etc). Para uma filosofia latino-americana poder surgir, faz-se necessário derrubar a concepção de mundo anterior, como aconteceu no mundo grego, romano, hebreu, europeu. De fato, o processo da atual organização da sociedade já está no fim, e o pensamento europeu é uma racionalização das condições globais de existência da sociedade atual, que será necessariamente derrubada, derrubada por todos nós, não por nenhuma tradição nacional isoladamente; ou será assim ou não será feito por ninguém. Terá que haver um intercâmbio global de mercadorias, de pessoas, de saberes, que construam uma nova organização. Neste contexto, a existência de uma tradição de pensamento é determinada também por essas relações globalizadas. 

O Brasil, pela sua própria constituição, já é internacional e globalizado. O Brasil pode conceber hoje a sua identidade como antropofagia, como mistura, e isso explica em parte porque o Brasil está hoje na moda na Europa. Esta seria como uma terceira via entre nacionalismo e colonialismo: a antropofagia, a mistura, a abertura a tudo. Diante dos velhos nacionalistas, os jovens franceses, por exemplo, escutam músicas árabes; a mistura musical está na ordem do dia, criando-se outras sonoridades desagradáveis para os ouvidos nacionalistas, tanto árabes quanto franceses; dilui-se cada vez mais a idéia mesma de nação. Nesse contexto, a atitude é: estar aberto a todas as influências a partir de uma antropofagia híbrida; o exemplo da música popular brasileira pode servir de exemplo: o caso de Gilberto Gil e os mutantes, o uso do amplificador, diante do qual muitos previam como o fim da música popular brasileira, e que acabou sendo mundialmente reconhecida; isto foi algo totalmente divorciado de qualquer nacionalismo, mas, ao mesmo tempo, algo singularmente brasileiro. Isto parece um convite para sair do eixo nacionalismo vs colonização; o nacionalismo deixou de ser uma alternativa válida para a dependência. 

Não são mais os indivíduos os que decidem o que filosofar ou porque filosofam ou sobre o que filosofam, mesmo que lhes pareça assim; tem que se perguntar como o filosofar liga-se com o acontecimento histórico-mundial, esse é o grande tema. Tem que haver uma ruptura com as tradições anteriores; como uma filosofia pode se transformar num acontecimento histórico-mundial, não de maneira isolada, sem se apoiar na genialidade individual; a filosofia está indissoluvelmente ligada a historia universal, e ela tem que ter efeitos práticos, não puramente contemplativos. A prática é o critério da verdade. A filosofia tem existência quando tem capacidade de desencadear acontecimentos historico-mundiais. E tem que se perguntar como o Brasil poderia fazer isso. 


COMENTÁRIOS:

Esta palestra foi uma das mais importantes da Semana, e me fez sentir um pouco o provincianismo em que nós mantemos ainda no Fibral as questões de filosofia no Brasil; como se todo o problema estivesse centrado no que acontece nos departamentos de filosofia. Aqui Dantas nos mostra – mesmo que dentro dos limites de rigorosas categorias marxistas – que o problema é muito maior, que ele é planetário, global, multi-abrangente; que a problemática do comentarismo e da produção própria de filosofia deve passar por uma reflexão social, econômica e política de grandes dimensões. 

Perguntar-se pelas condições – hoje em profunda crise – do filosofar europeu, e das conseqüências dessa derrubada dos valores hegemônicos para o nosso próprio filosofar. Nós continuamos a visualizar Europa como país hegemônico, poderoso, que da as cartas não só na filosofia; mas Dantas mostrou uma Europa híbrida insegura, em crise, decadente, como um monstro que cai e do qual devemos nos cuidar para que não nos esmague na sua magnífica queda; uma Europa talvez mais perigosa no seu declínio do que em seu auge. 

Assim, a pergunta pelo “haver” ou “não haver” filosofia brasileira passa pelos mecanismos – hoje globalizados – de produção do conhecimento, aceitando-se aqui a minha idéia deste não ser, em absoluto, um problema “ontológico”, mas de construção política. Seja o que for essa filosofia brasileira, Dantas nos diz, ela não mais poderá surgir de um “projeto nacional”, mas de um debruçar-se em cima da situação globalizada que hoje constitui ontologicamente o conhecimento e seus desdobramentos. 

De todas formas, na discussão que se seguiu à palestra, ficou claro que o nosso pensamento acerca da noção de “desde o Brasil” – idéia desenvolvida em meu texto “A questão da filosofia no Brasil no contexto da reflexão sobre civilização e barbárie no pensamento argentino”, que Dantas conhece e mencionou na sua palestra – não deve entender-se como um tipo de “projeto nacional” (e Dantas fez questão de frisar que assim tinha entendido ao ler o texto). Não se trata de um “desde” nacional, mas histórico-politico-existencial, algo que deve ser feito na história. 

Na minha intervenção, eu coloquei que embora na macro-política todos os países do mundo estejam globalizados, ainda no plano da micro-política continua havendo prerrogativas e privilégios dos países europeus sobre os nossos (por exemplo, na presença de Habermas e a ausência de Mariátegui em nossos curricula de filosofia política). Pois se temos que renunciar a projetos nacionais, Alemanha também teria que renunciar aos seus. Assim, parece que, no plano macro-político, há globalização para todos, mas no micro-político, parafraseando Orwell, alguns países estão mais globalizados que outros.

Então, eu tenho ainda um pouco de receio acerca deste projeto de “igualdade”, de “derrubada de todas as fronteiras”, de “Pátria global”, porque me parece que, agora no plano globalizado, se reproduzem as condições de desigualdade e exploração que existiam na época dos projetos nacionais; de maneira que parece haver algo, uma força muito poderosa, que atravessaria a distinção nacionalismo-globalização, e dentro da qual ainda valeria a pena insistir num pensamento-desde, antes de entrar de cabeça dentro da “realidade histórico-mundial”; pois tampouco esta “realidade” é um dado bruto; ela é tão construída quanto os antigos conceitos de nação.  

Me parece que esse “acontecimento histórico-mundial”, que reúne tudo aquilo comum ao humano, é um produto tardio de um Iluminismo euro-cêntrico, ainda presente no pensamento de Marx; a globalização à qual temos forçosamente – segundo Dantas - que nos referir, é também uma invenção do capitalismo; parece então que somos novamente convidados a pensar e agir em referência às vicissitudes do capitalismo. Parece-me que a antropofagia propõe, na verdade, uma outra forma de globalização (e talvez isto foi precisamente o que Dantas tentou dizer); uma globalização híbrida, múltipla, anti-imperialista. Mas a antropofagia aponta também na direção contrária a qualquer globalização: a um certo tipo de marginalização, de experiência profundamente local. 

Este foi o sentido, me parece, de uma das questões colocadas por Wanderson Flor no debate, de que lhe parecia problemática a dicotomia, colocada por Dantas, de “ou o histórico-mundial ou nada”, salientando ainda uma reivindicação do local e destacando os problemas da antropofagia como conceito elitista. Se o antropofagia é universalizada pode nos pregar peças quando tal conceito for assumido por setores conservadores (como quando imperialistas assumem o ponto de vista multi-cultural e elogiam a diferença); a antropofagia foi uma elaboração elitizada de uma experiência particular. Rodrigo admitiu que os conceitos se modificam nas mãos de quem deles se apropriam, como aconteceu mesmo com Jesus e com Marx. De todos modos, mesmo as singularidades só poderão hoje ser reivindicadas dentro de projetos conjuntos, mundiais, em torno do comum (como mostrou surpreendentemente o protesto indígena do Equador, que fez um governo cair, e sem que nem os próprios protagonistas pudessem acreditar na sua força). 

Nessa mesma linha eu me pergunto: não poderá ser este portentoso convite ao global uma estratégia para desativar o potencial revolucionário do local, do marginal, do provinciano? Ao que a perspectiva globalizadora poderá responder, talvez, que mesmo a noção de “local” poderia ser uma invenção da própria globalização. 

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